Fé e reflexão crítica presentes na caravana nacional da Cáritas
A Caravana Nacional da Cáritas Brasileira, realizada nos dias 27 e 28 de setembro, em Brasília (DF), foi envolvida pela presença da imagem peregrina de Nossa Senhora Aparecida e marcada pelo resgate da memória de preparação ao V Congresso Nacional, a ser realizado de 9 a 13 de novembro deste ano no Santuário de Aparecida, em São Paulo. Durante a mística de abertura, agentes Cáritas presentes formaram um círculo em torno da imagem da santa para celebrar e lembrar. Depois, formaram grupos de acordo com seus inter-regionais de origem. Em seguida, saíram em breve procissão até a sala onde seria realizada a análise de conjuntura socioeconômica, política, cultural e eclesial, organizada a partir dos relatos construídos nas caravanas inter-regionais. As boas vindas ao grupo foram dadas pela irmã Lourdes Staudt Dill, vice-presidente da Cáritas, e por Luiz Cláudio Mandela, diretor-executivo nacional da entidade.
Na ampla análise de conjuntura, a representação do Inter-Regional Centro-Oeste — formado pelas articulações Norte 3 e Centro-Oeste — trouxe de seu encontro regional a reflexão de que é preciso primeiro fortalecer as entidades-membros e as próprias articulações para que sejam criadas então as condições para a formação de um regional com atuação estruturada. Na avaliação sobre o atual momento do país, agentes Cáritas do Centro-Oeste ressaltaram que as decisões políticas estão sendo impostas sem a participação popular e que há aumento da violência praticada contra as juventudes e os povos indígenas. Também lembraram que não há no momento um projeto popular para o Brasil e que é fundamental que se supere a “pequena política para avançar na manutenção e conquista de direitos.
A representação do Inter-Regional Norte, por sua vez, trouxe uma imagem de Nossa Senhora da Amazônia para fazer companhia a Nossa Senhora Aparecida e reforçou a avaliação de que o período em que Luiz Inácio Lula da Silva ocupou a Presidência do Brasil coincidiu com a diminuição da influência dos Estados Unidos sobre a América Latina. Foi a partir da chegada ao poder em vários dos países latino-americanos de partidos que, uns mais e outros menos, tinham em sua base um legado popular e progressista, que as forças estadunidenses que almejam manter o poder econômico e político sobre o mundo passaram a articular o golpe no Brasil, junto a grupos políticos e econômicos locais.
A caravana do Norte também apontou que uma maior mobilização das forças populares no Brasil só se concretizou após a instalação efetiva do golpe. Enfatizou, ainda, que há atualmente a incidência de um forte discurso de ódio e criminalização contra os jovens das periferias e os pobres, e que o impacto do modelo de desenvolvimento vigente impõe destruição e morte aos povos da Amazônia. Em contrapartida, as forças populares têm poder de reação e devem se articular para informar corretamente à população sobre o que está ocorrendo, para incentivar o debate sobre isso e para disputar o futuro do país com as forças conservadoras.
Acomodação e luta de classes
A apresentação da análise de conjuntura construída pela caravana do Inter-Regional Sul, em seguida, começou com um enfático “Fora, Temer!”. As Cáritas reunidas no encontro inter-regional enfatizaram que a característica de conciliação presente em todo o governo Lula motivou a acomodação dos movimentos sociais e deixaram claro o equívoco desta situação, porque “não há conciliação possível na luta de classes”. A representação do Sul lembrou, por outro lado, que é preciso e necessário que se busque nossa identidade latino-americana neste “momento crítico do ataque das elites aos pobres e aos direitos”, porque há eleições municipais em disputa no Brasil este ano e porque o golpe praticado no Brasil foi imposto anteriormente a outros países das Américas Central e do Sul.
O encontro do Inter-Regional Sul destacou ainda que é preciso retomar as ações de formação política e que o método adotado na ação do Papa Francisco, de “gesto, fala, toque e testemunho”, deve servir de horizonte também às ações dos agentes Cáritas. Por fim, foram lembradas as palavras de esperança de dom Helder Camara: “Mariama… a marcha final vai ser linda de viver” e pontuado de que devemos todos e todas nos pautar pelas boas notícias que vêm das comunidades, especialmente a resistência heróica dos povos indígenas.
Já o Inter-Regional Sudeste ponderou que, no momento de seu encontro, havia ainda uma perspectiva de esperança, pois o processo de impeachment deflagrado contra a presidenta Dilma Rousseff não estava concluído. Ainda assim, a análise de conjuntura do encontro denunciou a série de crises que afetam o Brasil. Uma delas é a crise ambiental, impactada pelas mudanças climáticas; pela privatização dos recursos naturais; pelo crime ocorrido na cidade de Mariana, em Minas Gerais — causado pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração administrada pela empresa Samarco, controlada pelas companhias Vale e BHP Billiton –; pelas consequências do agronegócio e da chamada economia verde; pelo modelo energético baseado na exploração do petróleo e na construção de usinas nucleares e hidrelétricas; e pela exploração desenfreada da água e da terra.
Mas o encontro também pontuou as crises social, política, econômica e dos valores humanos. Esta última, presente na violência, no preconceito e no ódio, direcionado principalmente aos pobres e à população das periferias. A caravana inter-regional igualmente lembrou que o julgamento do governo Dilma Rousseff foi político e não jurídico, porque não houve crime de responsabilidade praticado por ela — o que contraria a Constituição Federal e configura o golpe praticado no Brasil –, e que não é possível conciliar o interesse econômico privado e os investimentos sociais. Por isso, a Cáritas defende um modelo de desenvolvimento sustentável, solidário e territorial.
Por fim, houve o relato da análise de conjuntura do Inter-Regional Nordeste, realizado no final de agosto, justamente no momento em que o impeachment era julgado no Senado Federal. A representação do inter-regional ponderou que, até a década de 1950, o Nordeste não era percebido pelo restante do país, o que passou a mudar a partir dos anos 1980. A inclusão da população nordestina nas políticas públicas só ganharia impulso nos governos Lula e Dilma. Entretanto, não houve mudanças nas estruturas política e econômica. De qualquer forma, a reflexão construída pelo inter-regional é de que o golpe contra a democracia praticado no Brasil representará perdas significativas para o Nordeste. O encontro também ressaltou que, mesmo com a presença do Papa Francisco, ainda há setores da Igreja que adotam uma postura acomodada diante da pobreza. Por outro lado, há setores que agem diante dos desafios enfrentados, entre os quais a Cáritas — “que faz o que faz por ser Igreja”. Nesta perspectiva, Cáritas e pastorais devem agir de forma coordenada, para que não haja sobrecarga de trabalho, mas também para que não haja sobreposição de tarefas.
Pastoralidade e transformação social
Após o relato da análise de conjuntura por parte dos inter-regionais, foi aberto espaço na programação da caravana nacional para a manifestação da coordenação da Cáritas, representada por Mandela, e da pastora Nancy Cardoso Pereira, co-responsável pela autoria do texto de referência do V Congresso Nacional da Cáritas Brasileira. Aliás, Mandela iniciou sua fala citando a colaboração de Nancy para as reflexões realizadas pela Rede Cáritas neste ano de celebração dos 60 anos da entidade, pois é dela a afirmação de que “pastoralidade sem transformação social não é pastoralidade”. Em seguida, Mandela passou a ler uma análise que apontava as eleições como um possível divisor de águas para o Brasil, já que havia uma forte tendência de que partidos conservadores assumissem as prefeituras, embora não fosse possível estabelecer grandes distinções entre as plataformas políticas dos partidos, que não apresentavam mudanças estruturais em suas propostas, se confundindo em alianças difusas Brasil afora. O detalhe é que esta análise de conjuntura tão atual é de março de 2008, o que demonstra quão pouco mudou o país em termos estruturais desde então.
O diretor-executivo da Cáritas também lembrou que é imprescindível que se estabeleça estratégias de ação próprias, já que quem não as possui acaba envolvido pelas estratégias dos outros. E lembrou a afirmação contundente de dom Helder: “quando alimentei os pobres, chamaram-me de santo. Mas, quando perguntei porque havia pobres, chamaram-me de comunista”. “Cinco inter-regionais nos desafiaram nesta perspectiva. Não é possível voltar aos anos 1960 ou 1980, para a organização de base de então. Mas temos que refletir sobre qual é o trabalho de base necessário hoje. Sempre falamos que precisamos articular parcerias, que precisamos desenvolver trabalhos em rede. Entretanto, quando não temos estratégia, acabamos por apenas seguir com os outros. Precisamos estabelecer como queremos fazer a transformação social a partir do nosso testemunho de pastoralidade”, enfatizou Mandela.
Nancy tomou a palavra seguindo na mesma linha de reflexão crítica, se questionando sobre o ponto de onde fazemos nossa análise de conjuntura e de violações de direitos? Ela ressalta que saímos da ditadura militar em direção a um processo incompleto de democracia, pois sequer os torturadores do regime repressivo e os agentes que praticaram todo o tipo de violência foram punidos. ‘Por quê?”, perguntou ela. “Porque os limites do Judiciário já estavam colocados naquele momento. O mesmo vale para o Poder Executivo. A sociedade brasileira não conseguiu se impor”, explicou. Nancy enfatiza que nossa polícia militar é outro resquício da ditadura militar, se constituindo em uma “ferida aberta” permanente. “A sociedade brasileira sempre foi racista. Há um massacre da população negra há 500 anos”, ponderou ela, lembrando que esta deficiência de acesso a direitos e à própria democracia repercute também na nossa mídia autoritária e seletiva. “A polícia militar no Brasil age como capitão-do-mato. A mídia também”.
Por Luciano Gallas / Assessoria Nacional de Comunicação
Fotos: Luciano Gallas